quarta-feira, 3 de maio de 2017

Melissa

Era mais um dia frio, como tantos outros naquele lugar, onde até mesmo o sol de verão não conseguia ser quente. Melissa caminhava pelas calçadas da cidade em direção ao trabalho, pensativa. O que ela precisava era de uma mudança. De emprego, de cidade, de vida. Até a menor das mudanças a essa altura faria toda a diferença para ela.
Já faziam três anos que Melissa vinha seguindo mais ou menos a mesma rotina: acordar de manhã, se arrumar, ir para a empresa, voltar para casa, jantar, ler e dormir. Ler sempre havia sido muito importante para ela, mas esse, ultimamente, era o único momento de seus dias em que ela conseguia sentir-se viva. Era quando ela conseguia enxergar o mundo com cores intensas, sentir calor, alegria ou qualquer outra coisa. No resto do tempo, era quase como se estivesse morta.
O problema é que ela nunca fora boa em tomar decisões. Ainda não sabia especificamente o que queria da vida; não sabia o que esperar ou o que deveria buscar. Costumava sentir-se continuamente tensa, ansiosa, como se estivesse esperando por algo, mas não sabia dizer o que. Até o dia em que decidiu não sentir-se mais assim. Decidiu que iria esquecer aquelas sensações e esqueceu mesmo. Mas não conseguiu encontrar outras novas. Não sentia prazer no trabalho; não sentia vontade de estar com as outras pessoas, pois estas a irritavam ou simplesmente a deixavam entediada; não queria sair, nem tampouco ficar em casa.
Um dia, a caminho do trabalho, Melissa pensou em como seria bom se pudesse sair um pouco de seu próprio corpo e ver as coisas de fora. Imaginou que acharia graça de tudo, de sua vida, de suas ações, de sua obsessão com pequenos problemas. E depois, ficou pensando: "Bem, se eu acharia graça de tudo estando fora do meu corpo, por quê não posso achar graça de tudo estando dentro dele?" E então ela tentou.
Melissa tentou por tudo nesse mundo não levar qualquer coisa tão a sério. Tentou não se estressar com pequenos problemas no trabalho, como o ruído de seu colega mastigando na hora do almoço, com os vizinhos imbecis que não viam problema em ficar conversando e rindo alto até altas horas da noite como se estivessem em um bar, embora estivessem sentados na calçada. Tentou ser mais descontraída, mais relaxada, mais extrovertida. Tentou e tentou e tudo o que conseguiu com isso foi ficar duas vezes mais tensa e irritável.
Então, Melissa passou a sentir vontade de gritar, de quebrar tudo o que via, de brigar com todos. Viveu assim por uns quatro meses, até que as pessoas passaram a evitá-la e a exaustão passou a ser parte de si como uma gêmea siamesa. Com o tempo, a exaustão foi diminuindo, mas deixou em seu lugar um grande abatimento, uma apatia.
Agora, era tudo questão de fazer o que tinha que ser feito e nada mais. Ela nem sequer pensava, já havia decorado tudo, todos os horários, todos os movimentos... Até mesmo o despertador se tornou desnecessário, pois ela abria os olhos sempre na hora certa. E Melissa não tinha problemas para dormir, mas também não sentia diferença entre dormir oito horas por noite ou passar vinte e quatro acordada. Vivia sempre com a sensação de que estava num sonho, tudo passava em câmera lenta e parecia provocar torpor. Nunca tinha certeza se estava mesmo em um determinado lugar, ou se era truque de sua mente durante o sono e já escutara uma colega de trabalho comentando com outra que a presença dela ali ou sua ausência seriam a mesma coisa. O único choque que ela teve neste episódio foi o de constatar que não se importava. Quer dizer, ela sabia que devia se importar, mas não conseguia senti-lo.
Nesta manhã específica, Melissa teve a sensação de que estava acordando de um longo período de sono. Começou quando, ao escovar os dentes, ela se olhou no espelho e notou uma pequena ruga no canto externo de cada olho. Se deu conta de que o tempo estava passando para ela e de que isso era inevitável e irremediável. Neste momento, ela teve um estalo e se lembrou da que naquela data era seu aniversário: Melissa estava completando 30 anos. Esqueceu-se de que estava escovando os dentes e ficou uns cinco minutos parada, olhando pro espelho, sem ver sua imagem.
Enquanto olhava fixamente para a frente, Melissa via dentro de sua cabeça tudo o que havia sido sua vida até ali. Deu-se conta de que não fora nada além de uma sucessão de dias e mais dias e mais dias. Simples assim. Desinteressante assim. Quer dizer, ela nunca viajara para nenhum lugar que ficasse mais longe do que a cidade vizinha, e mesmo assim fora a trabalho. Nunca fizera metade das coisas que gostaria, porque estava sempre esperando alguém para acompanhá-la. Havia um restaurante a trinta minutos de caminhada de sua casa, onde ela morria de vontade de comer, mas nunca fora porque seus amigos queriam comer sempre nos mesmos lugares, e nenhum deles era este restaurante. Mas e daí? Para quê ela precisava de companhia? Aliás, os amigos de Melissa eram outro assunto que ela precisava analisar.
Desde a época da faculdade, Melissa andava sempre com a mesma turma. Não se lembrava bem de como sua amizade com eles começara, nem por quê. Tudo o que fazia parte daquela época estava embaralhado em sua cabeça por conta das bebedeiras constantes. Melissa apenas sabia que aquelas pessoas faziam parte de sua vida durante os últimos onze anos. E que era o grupo de pessoas mais desprezíveis que ela conhecia. Eram depravados, irresponsáveis e não tinham um pingo de respeito ou consideração por ela. Mas, por hábito e um certo medo de se ver sozinha, Melissa havia continuado a aceitar a presença deles na sua vida.
Quanto à sua família, ela sabia que precisava reaproximar-se deles. Seu pai havia recebido uma proposta de trabalho em outra cidade havia cinco anos, por isso ele, sua mãe, seu irmão e sua irmã haviam mudado de endereço junto com ele. Melissa, no entanto, decidira ficar. Ela tinha um emprego que pagava razoavelmente bem para uma pessoa que não tinha maiores responsabilidades na vida e a ideia de morar sozinha e ter liberdade para fazer o que quisesse era muito tentadora para ser deixada de lado. Então, ela ficou. E pouco tempo depois, descobriu que a vida de uma pessoa adulta não era nada daquilo que havia imaginado. Mas quando se deu conta disso, já estava acostumada a ter privacidade e seu próprio canto no mundo, então de qualquer maneira era tarde demais para voltar para a companhia dos pais. No entanto, com o tempo e a correria normal da vida de alguém que trabalha para pagar as próprias contas, Melissa passou a falar cada vez menos com a família. Eles se tornaram praticamente estranhos uns para os outros. Mas ainda estava em tempo de reverter os danos. E ela faria isso.
Depois de iniciar seu dia de forma tão diferente, Melissa se aprontou para o trabalho e saiu de casa, como sempre, para mais uma caminhada até a empresa. Ela costumava ver essas caminhadas como um fardo, mas não hoje. Hoje tudo estava diferente. Hoje, ela reparou na luz desmaiada do sol frio e se deu conta de que isso tinha sua beleza; reparou nas pessoas fazendo seus caminhos com a mesma expressão que ela mesma costumava ostentar e sentiu uma tristeza momentânea; viu as flores do jardim do casarão pelo qual passava diariamente e, dessa vez, olhou para elas, chegando a parar para observá-las. Melissa decidiu que aquele seria o primeiro dia de sua vida “de verdade”. Não que ela esperasse estar enlevada assim em todos os momentos de todos os dias. Mas, parada em frente àquele casarão, olhando aquelas flores, Melissa decidiu que nunca mais viveria sua vida como se estivesse em um sonho estranho e perturbador. Ela decidiu que, a partir daquele dia, ela estaria acordada e alerta para o que quer que fosse: se tivesse que sentir dor, sentiria toda a dor; se tivesse que ficar triste, ficaria triste de verdade; se ficasse feliz, iria rir e cantar; e, se se sentisse deleitada como naquele dia, iria explodir.
Naquele dia, Melissa seguiu seu caminho até o trabalho, como sempre. Porém ao chegar, foi direto à sala do chefe e pediu demissão. Depois, foi à rodoviária, comprou uma passagem para a cidade onde agora vivia sua família e foi visitá-los. E, depois, viveu o resto de sua vida acordada, alerta e sentindo tudo aquilo que achava correto sentir.