quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

O dia perfeito

Durante toda a sua vida, Paloma foi uma pessoa contida. Raramente externava alguma emoção negativa e, mesmo quando estava feliz, não demonstrava isso de maneira arrebatada. Entretanto, era uma pessoa bastante ansiosa e sentia dificuldade em controlar esta condição. Porém, quando sentia esta emoção de maneira mais forte, fazia um esforço e respirava fundo. Algumas vezes, se distanciava das pessoas ao redor e não se comunicava muito. Outras, desatava a falar e a fazer piadinhas e ria. Aliás, essas eram as vezes em que mais demonstrava o que sentia, mas as pessoas não pareciam notar nada de estranho nisto.
Contudo, ultimamente vinha se irritando mais que nunca em sua vida, cada vez com mais frequência e pelas menores coisas. Como num outro dia, em que uma senhora esbarrou nela na rua e Paloma teve vontade de esmurrá-la. Naquele dia, ela assustou-se muito consigo mesma. Sabia que era uma reação desproporcional e sabia também qual era seu problema.
Toda vez que alguém fazia ou dizia algo que a desagradava, Paloma não tinha qualquer reação. Apenas, como sempre, respirava fundo e pensava que tinha que se acalmar, que não valia a pena entrar em um conflito, que não era boa nisso e que arrumaria algum problema. E, desta forma, as pessoas seguiam destratando a moça. Quanto mais educada e respeitosa ela se mostrava, mais as pessoas pareciam sentir-se confortáveis em molestá-la e mais fundo ela entrava em sua mente e em seu próprio mundo. Já havia chegado a um ponto em que havia se afastado quase completamente do mundo exterior e de seus habitantes, quase nunca saía de casa, a não ser para trabalhar e, embora fosse relativamente fácil falar com ela, era cada vez mais difícil aproximar-se de fato, pois Paloma não o permitia.
Paloma sabia que precisava mudar, para seu próprio bem e, principalmente, para o bem das outras pessoas, pois sentia a linha entre a sanidade e a loucura cada vez mais estreita. Precisava falar, demonstrar, fazer com que soubessem quando algo não era de seu agrado, mas de uma forma civilizada. Não obstante, o hábito de retrair-se e recuar era muito forte e ela sempre caía na mesma armadilha de sua própria mente, que a dizia para se acalmar e esquecer.
A cada dia, Paloma levantava da cama com o propósito de fazer as coisas de maneira diferente e, naquele dia em particular, estava especialmente bem-disposta. Sentia algo diferente em si mesma, como se uma espécie de descarga houvesse sido puxada em sua cabeça e todos os problemas houvessem simplesmente sumido.
O dia estava lindo. Claro, era verão. O céu estava limpo, brilhante, o ar da manhã era fresco e revigorante e isso a fez sorrir.
Paloma tomou seu café, se arrumou e saiu para mais um dia de muito trabalho. Decidiu que não ia deixar nada nem ninguém tirá-la do sério hoje, mas que também não havia nenhuma razão para se preocupar com isso. Seu dia seria perfeito. Foi assim que ela decidiu e assim foi.
Ao chegar no escritório, cumprimentou a todos com um sorriso e sentou-se à sua mesa. Então, chegou aquela sua colega que adorava provocá-la. Paloma começou a franzir as sobrancelhas, mas lembrou-se que hoje era um dia diferente e não havia nada com que se preocupar. Olhou para a mulher e a cumprimentou como havia feito com todos os outros naquele dia: com um bom-dia animado e um sorriso. Mas a colega falou algo que, por mais que tentasse agora, não conseguia lembrar. Na verdade, não conseguia lembrar-se muito bem de nada após aquilo. Mas não tinha importância. A única coisa de que precisava lembrar-se era de como havia respondido.
Ao ouvir a resposta ao seu bom dia daquela colega que costumava fazê-la sentir-se mal, Paloma levantou sorrindo e sentindo-se leve e pegou um taco de madeira que estava embaixo de sua mesa. Não sabia como aquilo havia ido parar ali, mas isso também não tinha importância nenhuma. Aproximou-se sentindo-se muito, muito feliz e disferiu um golpe na cabeça dela. Gritou de alegria, pois o sangue que jorrou de sua cabeça era de um vermelho-vivo lindíssimo. Bateu de novo. E de novo. E de novo. Bateu até que seus braços começaram a doer. E então olhou em volta e viu os rostos de seus colegas, horrorizados. Não entendeu nada, estava tão feliz! Aquele era o dia perfeito.
Em pouco tempo, apareceram várias pessoas estranhas, a seguraram algemaram, colocaram em um carro. Ela continuava sem entender, mas não tinha importância. Aquele era o dia perfeito.
Nada poderia estragar aquele dia: nem as pessoas que a algemaram, nem as pessoas que lhe fizeram um monte de perguntas sem sentido sobre os motivos que a levaram a cometer um tal assassinato, nem as pessoas de branco que a examinaram, amordaçaram, colocaram uma camiseta engraçada nela e a puseram sozinha em uma pequena sala sem janelas. Nada daquilo tinha importância, porque aquele foi o dia perfeito, assim como o dia depois dele, o dia depois deste e todos os outros dias desde então. Paloma nunca mais havia se sentido triste, ansiosa, irritada, solitária, nem nunca mais havia tido qualquer sentimento ruim. Ela agora estava sempre feliz e todos os dias eram o dia perfeito.
Sua vida agora era perfeita.

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Pensamentos avulsos II

Toda vez que fecho os olhos, vejo a sua imagem. Clichê, eu sei. Mas nem por isso deixa de acontecer. Inexplicavelmente, pois nem te conheço ainda (e talvez nunca venha a conhecer), está sempre rondando meus pensamentos: quando estou dormindo ou acordada, em casa ou no trabalho, ouvindo música, assistindo a um vídeo, o que quer que esteja fazendo, você está sempre por aqui. Acho muito estranho. Te vi, gostei, mas não dei muita importância. Mal sabia o que me esperava! Tentei ser racional. Afinal, pensei, pode nem ser tão interessante. E também não faz o menor sentido, essa cisma com você.
Às vezes você some. Fico um pouco ansiosa, mas me dá um alívio. Penso: "Tomara que nunca mais te veja de novo!" Mas aí você entra por aquela porta e... E sempre levanto a cabeça bem na hora, para te ver caminhando em minha direção como se o mundo estivesse em câmera lenta. Meu coração dispara, eu engulo em seco, sinto o sangue correr depressa pelo meu rosto, quase posso vê-lo fazendo seu caminho por cada pequena veia e sei que estou ridiculamente, vergonhosamente, corada. Minhas mãos suam e tremem e toda a minha atenção esta agora voltada para você. Exceto pelo fato de que começo a pensar no quanto isto é, ao mesmo tempo, ridículo e cômico.
Até mesmo te ver de relance na rua me tira do eixo. Posso passar de um estado calmo e relaxado a um nervoso terrível em poucos segundos.
Quando você não aparece, faço um esforço para entender e esquecer. Porque acredito que para esquecer, primeiro é necessário entender. Mas não entendo muito bem. Ponho em evidência que você pode não ser nada do que imagino. Pode ser pior do que o pior dos piores. Pode ser um banana. Só que banana é minha fruta favorita...
Mesmo com tudo isso, se você nao estiver presente, e ainda que continue a martelar meus pensamentos, lentamente, muito lentamente, sua imagem começa a desvanecer e sinto novamente o alívio e a esperança de que tudo foi uma bobagem, fruto de uma mente romântica e fantasiosa. E pode ser, mesmo. Mas aí você aparece novamente e pronto: todo meu esforço vai por água abaixo só com te ver. E tudo o que me resta é soltar um suspiro de resignação e aguardar o dia em que poderei por tudo à prova ou por aquele em que você vai sumir de vez e eu nunca mais vou te ver. Acho que ficaria satisfeita com qualquer uma das duas opções. Até lá, só me resta ficar neste limbo...

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Reflexões avulsas I

Há dias ela não conseguia dormir bem. Tinha insônia noite após noite e, a cada noite, dormia um pouco menos. Desta vez, haviam sido quatro horas. Sentia-se como se estivesse em um sonho. Não podia concentrar-se direito no trabalho. Tinha vontade de chorar. Ao fim do dia, quando chegava em casa, já não tinha energia para mais nada. Deitava-se em sua cama, com o notebook no colo, e ficava zanzando pela internet. Às dez apagava a luz e ficava rolando de um lado para outro. Ela sabia que precisava fazer algo mais do que isso. "Talvez, pensou, se eu me ocupasse com mais alguma coisa... Algum curso, algum esporte, um segundo emprego... Talvez assim eu conseguisse simplesmente deitar e dormir." Vinha pensando também em retomar sua vida amorosa, que já estava totalmente parada havia muito tempo. Fizera uma ou duas tentativas frustradas, que não resultaram sequer em um encontro. E, apesar de sentir falta de ter alguem, também não estava totalmente certa de estar pronta. Achava que não tinha muito a oferecer e, além disso, tinha medo. Já havia percebido que parecia ter um "dom" todo especial para atrair os homens errados. Depois, acabava pensando que é assim mesmo. "A gente conhece alguém, se apaixona, namora e depois vê que aquela não era a pessoa certa." Mas mesmo assim, estava em dúvida se era só isso mesmo. Estava confusa e já não sabia o que queria. Antes, sempre teve certeza de que não queria se casar, nem ter filhos. Hoje, a perspectiva de viver a vida toda sozinha a assustava. Em contrapartida, não achava que poderia suportar os fardos do casamento e da maternidade. Sabia, por observação, que não eram coisas de todo ruins, havia lá seus bons e maus momentos. Mas e depois que a novidade acabasse e o tédio da rotina tomasse conta de tudo? Como ela poderia suportar? Sem contar que homens e mulheres são seres tão diferentes que isso só parece tornar tudo mais difícil. Ela estava incerta quanto ao seu próprio futuro e provavelmente isso era o que estava causando as noites de insônia. Estava sofrendo e não sabia o que fazer para acabar com isso. Era como se estivesse pregada ao chão e pudesse ver tudo ao seu redor, apreender tudo, mas não podia alcançar nada. Ás vezes sentia que poderia ficar louca. Ás vezes, parecia que só mais um dia desses seria a gota d'água que faria transbordar o copo. Porque seu copo estava cheio e, apesar de nem tudo ser ruim, ele não estava cheio apenas com as coisas boas da vida.
Sentada em um banco em seu horário de almoço, viu o sol surgir fracamente por trás das nuvens e pensou que tudo iria melhorar, que era só questão de tempo, mas ouviu o som de um trovão e ficou imaginando quanto tempo mais. E quem. Apesar das dúvidas não podia deixar de se fazer essa pergunta: quem?
Olhou no relógio e viu que já tinha dado sua hora. Tinha o resto do dia para enfrentar e não podia se permitir ficar com esse ânimo tão para baixo. Afinal, se nem tudo são flores, também nem todas elas estão mortas.
Apagou o cigarro e seguiu o curto caminho de volta para o trabalho. Tudo ia ficar bem.

segunda-feira, 19 de junho de 2017

A Mulher Dilacerada

Ela sentia vergonha. Era uma vergonha terrível e também havia um sentimento de culpa profundo. Ela se sentia envergonhada e culpada, pois havia traído. E não fora uma traição a outrem, mas sim a pior das traições: havia traído a si mesma. Traíra a seus princípios e crenças, traíra àquilo que acreditava ser sua própria essência. Ferira sua própria dignidade. Havia machucado mais a si mesma do que jamais machucara qualquer outra pessoa e mais do que qualquer outra pessoa já havia machucado a ela. Sabia que demoraria muito tempo para se recuperar dessa agressão autoinfligida. Sabia que se lembraria disso para o resto da vida. Não seria uma daquelas memórias esquecidas, não, jamais. Seria uma daquelas coisas que voltam à mente diversas vezes, sem aviso, em qualquer dia, em qualquer momento, em sonhos ou acordada. Seria uma daquelas coisas que maculam a felicidade e diminuem a paz de espírito. E quando ela estivesse em um momento particularmente difícil da vida e se perguntasse o por quê, por quê justamente com ela, a memória dessa traição retornaria para explicar, para dar esse motivo, como se fosse a punição por um crime, ou por um pecado, se ela acreditasse em pecados.
A traição, o crime, o pecado que ela cometera contra si própria era algo de que ela sempre teria vergonha demais para esquecer ou para expor. Seria sempre algo que faria ela querer chorar, porém não traria as lágrimas aos olhos, porque ela não tinha esse direito. E a pior parte era que ela não conseguia entender a razão. Por quê sempre fazia esse tipo de coisa consigo mesma? Era tão simples! Apenas não faça. Se não condiz com quem você é, se não lhe convém, não faça! Mas era sempre a mesma coisa. Sempre incorria no mesmo tipo de erro. Porém, havia uma coisa que ela não se permitiria: sentir pena de si mesma.
A piedade, para ela, em especial a autopiedade, era o pior dos venenos, pois agia de forma muito lenta e, ao mesmo tempo, muito dolorosa. Era o tipo de coisa que faz as pessoas envelhecerem antes do tempo e se tornarem amargas e cruéis. Ela preferiria sentir ódio de si mesma. Preferiria, antes, tirar a própria vida. Mas não sentir pena. Isso, não.
Não sentiria pena. Mas também não se perdoaria jamais por um erro como esse. E, neste exato momento, não sentia nenhum amor, nenhum sentimento bom em relação à sua própria pessoa. Neste momento, nem queria olhar no espelho. Pois em vez de um rosto jovem e belo, como era o seu, veria a personificação de tudo o que é feio e mal e velho além do ponto de recuperação. Neste momento, ela era como uma coisa cinzenta e doente, com a pele enrugada e a alma dilacerada. Neste momento, ela nem era ela. Neste momento, ela queria que este momento não existisse. Mas sabia que ele existia e que teria de vivê-lo e sobreviver a ele. E esperava que, no futuro, nunca mais cometesse um tal ato de traição. E isso era tudo o que ela podia fazer agora.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Melissa

Era mais um dia frio, como tantos outros naquele lugar, onde até mesmo o sol de verão não conseguia ser quente. Melissa caminhava pelas calçadas da cidade em direção ao trabalho, pensativa. O que ela precisava era de uma mudança. De emprego, de cidade, de vida. Até a menor das mudanças a essa altura faria toda a diferença para ela.
Já faziam três anos que Melissa vinha seguindo mais ou menos a mesma rotina: acordar de manhã, se arrumar, ir para a empresa, voltar para casa, jantar, ler e dormir. Ler sempre havia sido muito importante para ela, mas esse, ultimamente, era o único momento de seus dias em que ela conseguia sentir-se viva. Era quando ela conseguia enxergar o mundo com cores intensas, sentir calor, alegria ou qualquer outra coisa. No resto do tempo, era quase como se estivesse morta.
O problema é que ela nunca fora boa em tomar decisões. Ainda não sabia especificamente o que queria da vida; não sabia o que esperar ou o que deveria buscar. Costumava sentir-se continuamente tensa, ansiosa, como se estivesse esperando por algo, mas não sabia dizer o que. Até o dia em que decidiu não sentir-se mais assim. Decidiu que iria esquecer aquelas sensações e esqueceu mesmo. Mas não conseguiu encontrar outras novas. Não sentia prazer no trabalho; não sentia vontade de estar com as outras pessoas, pois estas a irritavam ou simplesmente a deixavam entediada; não queria sair, nem tampouco ficar em casa.
Um dia, a caminho do trabalho, Melissa pensou em como seria bom se pudesse sair um pouco de seu próprio corpo e ver as coisas de fora. Imaginou que acharia graça de tudo, de sua vida, de suas ações, de sua obsessão com pequenos problemas. E depois, ficou pensando: "Bem, se eu acharia graça de tudo estando fora do meu corpo, por quê não posso achar graça de tudo estando dentro dele?" E então ela tentou.
Melissa tentou por tudo nesse mundo não levar qualquer coisa tão a sério. Tentou não se estressar com pequenos problemas no trabalho, como o ruído de seu colega mastigando na hora do almoço, com os vizinhos imbecis que não viam problema em ficar conversando e rindo alto até altas horas da noite como se estivessem em um bar, embora estivessem sentados na calçada. Tentou ser mais descontraída, mais relaxada, mais extrovertida. Tentou e tentou e tudo o que conseguiu com isso foi ficar duas vezes mais tensa e irritável.
Então, Melissa passou a sentir vontade de gritar, de quebrar tudo o que via, de brigar com todos. Viveu assim por uns quatro meses, até que as pessoas passaram a evitá-la e a exaustão passou a ser parte de si como uma gêmea siamesa. Com o tempo, a exaustão foi diminuindo, mas deixou em seu lugar um grande abatimento, uma apatia.
Agora, era tudo questão de fazer o que tinha que ser feito e nada mais. Ela nem sequer pensava, já havia decorado tudo, todos os horários, todos os movimentos... Até mesmo o despertador se tornou desnecessário, pois ela abria os olhos sempre na hora certa. E Melissa não tinha problemas para dormir, mas também não sentia diferença entre dormir oito horas por noite ou passar vinte e quatro acordada. Vivia sempre com a sensação de que estava num sonho, tudo passava em câmera lenta e parecia provocar torpor. Nunca tinha certeza se estava mesmo em um determinado lugar, ou se era truque de sua mente durante o sono e já escutara uma colega de trabalho comentando com outra que a presença dela ali ou sua ausência seriam a mesma coisa. O único choque que ela teve neste episódio foi o de constatar que não se importava. Quer dizer, ela sabia que devia se importar, mas não conseguia senti-lo.
Nesta manhã específica, Melissa teve a sensação de que estava acordando de um longo período de sono. Começou quando, ao escovar os dentes, ela se olhou no espelho e notou uma pequena ruga no canto externo de cada olho. Se deu conta de que o tempo estava passando para ela e de que isso era inevitável e irremediável. Neste momento, ela teve um estalo e se lembrou da que naquela data era seu aniversário: Melissa estava completando 30 anos. Esqueceu-se de que estava escovando os dentes e ficou uns cinco minutos parada, olhando pro espelho, sem ver sua imagem.
Enquanto olhava fixamente para a frente, Melissa via dentro de sua cabeça tudo o que havia sido sua vida até ali. Deu-se conta de que não fora nada além de uma sucessão de dias e mais dias e mais dias. Simples assim. Desinteressante assim. Quer dizer, ela nunca viajara para nenhum lugar que ficasse mais longe do que a cidade vizinha, e mesmo assim fora a trabalho. Nunca fizera metade das coisas que gostaria, porque estava sempre esperando alguém para acompanhá-la. Havia um restaurante a trinta minutos de caminhada de sua casa, onde ela morria de vontade de comer, mas nunca fora porque seus amigos queriam comer sempre nos mesmos lugares, e nenhum deles era este restaurante. Mas e daí? Para quê ela precisava de companhia? Aliás, os amigos de Melissa eram outro assunto que ela precisava analisar.
Desde a época da faculdade, Melissa andava sempre com a mesma turma. Não se lembrava bem de como sua amizade com eles começara, nem por quê. Tudo o que fazia parte daquela época estava embaralhado em sua cabeça por conta das bebedeiras constantes. Melissa apenas sabia que aquelas pessoas faziam parte de sua vida durante os últimos onze anos. E que era o grupo de pessoas mais desprezíveis que ela conhecia. Eram depravados, irresponsáveis e não tinham um pingo de respeito ou consideração por ela. Mas, por hábito e um certo medo de se ver sozinha, Melissa havia continuado a aceitar a presença deles na sua vida.
Quanto à sua família, ela sabia que precisava reaproximar-se deles. Seu pai havia recebido uma proposta de trabalho em outra cidade havia cinco anos, por isso ele, sua mãe, seu irmão e sua irmã haviam mudado de endereço junto com ele. Melissa, no entanto, decidira ficar. Ela tinha um emprego que pagava razoavelmente bem para uma pessoa que não tinha maiores responsabilidades na vida e a ideia de morar sozinha e ter liberdade para fazer o que quisesse era muito tentadora para ser deixada de lado. Então, ela ficou. E pouco tempo depois, descobriu que a vida de uma pessoa adulta não era nada daquilo que havia imaginado. Mas quando se deu conta disso, já estava acostumada a ter privacidade e seu próprio canto no mundo, então de qualquer maneira era tarde demais para voltar para a companhia dos pais. No entanto, com o tempo e a correria normal da vida de alguém que trabalha para pagar as próprias contas, Melissa passou a falar cada vez menos com a família. Eles se tornaram praticamente estranhos uns para os outros. Mas ainda estava em tempo de reverter os danos. E ela faria isso.
Depois de iniciar seu dia de forma tão diferente, Melissa se aprontou para o trabalho e saiu de casa, como sempre, para mais uma caminhada até a empresa. Ela costumava ver essas caminhadas como um fardo, mas não hoje. Hoje tudo estava diferente. Hoje, ela reparou na luz desmaiada do sol frio e se deu conta de que isso tinha sua beleza; reparou nas pessoas fazendo seus caminhos com a mesma expressão que ela mesma costumava ostentar e sentiu uma tristeza momentânea; viu as flores do jardim do casarão pelo qual passava diariamente e, dessa vez, olhou para elas, chegando a parar para observá-las. Melissa decidiu que aquele seria o primeiro dia de sua vida “de verdade”. Não que ela esperasse estar enlevada assim em todos os momentos de todos os dias. Mas, parada em frente àquele casarão, olhando aquelas flores, Melissa decidiu que nunca mais viveria sua vida como se estivesse em um sonho estranho e perturbador. Ela decidiu que, a partir daquele dia, ela estaria acordada e alerta para o que quer que fosse: se tivesse que sentir dor, sentiria toda a dor; se tivesse que ficar triste, ficaria triste de verdade; se ficasse feliz, iria rir e cantar; e, se se sentisse deleitada como naquele dia, iria explodir.
Naquele dia, Melissa seguiu seu caminho até o trabalho, como sempre. Porém ao chegar, foi direto à sala do chefe e pediu demissão. Depois, foi à rodoviária, comprou uma passagem para a cidade onde agora vivia sua família e foi visitá-los. E, depois, viveu o resto de sua vida acordada, alerta e sentindo tudo aquilo que achava correto sentir.

segunda-feira, 20 de março de 2017

Lembranças de uma Adolescência Aborrecente II

O Precipício
Siga-me!
Sou eu, sua rainha,
com meus cachos de ébano.
Meu olhar profundo de obscuro mistério.
Meu toque frio te atrai e te repele
Você é minha vítima,
escravo de minha beleza assassina,
embrenhado em negras nuvens
de um sonho real
Sem honra, sem vida, sem vontade própria,
sem rumo sob o céu trevoso
de minha ira serena que te domina
Não há mais volta
e a única saída
é o fim.

Lembranças de uma Adolescência Aborrecente I

Tarja
Sob o luar fantasmagórico
E o céu negro e trovejante
Ela caminha sem rumo
Com o medo a cercá-la

Seu destino está toldado
Pelo mesmo tecido que cobre sua pele
Mais branca que a neve
Que cai em flocos letais sobre ela

Seus olhos insondáveis olham somente para a frente
Suas mãos crispadas revelam o terror
Que habita em seu coração cheio de trevas

Mas a moça de preto segue em frente
Sem rumo, sem parar, sem vida...

sábado, 21 de janeiro de 2017

Melissa

Melissa estava cansada. Havia tido uma semana estressante no trabalho. O chefe não saía de seu pé, os clientes da loja estavam insuportáveis e uma de suas colegas a estava deixando louca com sua inconveniência. Mas o que mais a preocupava não era isso.
Havia uma coisa em que Melissa vinha reparando em si mesma e era a facilidade com que ficava obcecada. Se lia um livro do qual gostasse, ficava obcecada por ele; se comprava uma peça de roupa que caísse bem no seu corpo, ficava obcecada por ela; e, claro, se se interessasse por um homem, também ficava obcecada. E agora ela estava bastante interessada em um.
O problema era que este homem que havia atraído sua atenção era um colega de trabalho. Trabalhavam juntos havia seis meses, mas Melissa havia andado muito preocupada com outras questões de sua vida para que reparasse nele. Mas assim que conseguiu resolver uma boa parte dessas questões, parou para olhar ao deu redor e não apenas o viu, mas realmente o enxergou pela primeira vez.
Agora, ela não conseguia mais tirá-lo de sua cabeça. Pensava nele dia e noite, sonhava com ele acordada e dormindo. Quando precisava falar com ele, tinha que fazer um esforço enorme para se comportar normalmente e não ficar o tempo todo olhando diretamente para sua boca. Quando o via de costas, tinha que se obrigar a olhar para outro lado em vez de ficar encarando aquelas costas tão largas com a boca aberta, até que ele sentisse seu olhar e a surpreendesse quase babando.
Na verdade, Melissa estava bastante surpresa que ele, ao menos aparentemente, ainda não houvesse notado seu interesse. Aliás, nem ele, nem ninguém na empresa. Ela estava assustada com essas duas possibilidades, mas admitia para si mesma que talvez esse medo fosse proveniente do fato de que ela estava tão envolvida com essa nova situação que não parava de enviar sinais através de sua expressão corporal. Esquecia, porém, que ela era só mais uma no meio da multidão e que as pessoas com quem trabalhava tinham suas próprias vidas para viver e não tinham tempo para ficar reparando em quem ela poderia estar a fim.
Acontece que seu medo de alguém perceber era tanto que, toda vez que via alguém cochichando achava que era sobre isso. E toda vez que percebia algum de seus colegas a olhando, tinha certeza de que ele ou ela tinha descoberto seu segredo. Porque era um segredo.
O fato era que Melissa não tinha a menor intenção de fazer qualquer coisa a respeito. Se ele ao menos não fosse seu colega de trabalho... Mas, sendo assim, ela achava melhor que não acontecesse nada. Ela sabia muito bem que as coisas poderiam dar errado e depois eles teriam uma situação bastante constrangedora no trabalho. Ele poderia lhe dar um fora, o que seria horrível, já que eles trabalhavam juntos. Ou ele poderia convidá-la para sair e eles poderiam ter um encontro ruim e isso também seria horrível, já que eles trabalhavam juntos.
E assim, Melissa ficou nesse impasse por três meses, obcecada, sonhando acordada, mas sem coragem de tomar uma atitude.
Mas então, no último dia do verão, ela chegou ao trabalho e notou um clima diferente, uma certa excitação em seus colegas. Estavam em um clima bastante festivo e maioria deles sorria de orelha a orelha, embora fossem apenas sete e meia da manhã. Melissa não estava entendendo nada. Foi quando sua melhor amiga chegou até ela e perguntou se já sabia da novidade.
-Novidade? Não, que novidade?
A amiga por fim lhe contou que Cristiano, o mesmo cara de quem ela estava secretamente a fim, vinha saindo com uma de suas colegas há dois meses e que, na noite anterior, a havia pedido em namoro com toda a pompa e circunstância. Agora ela via que a tal menina andava de um colega a outro, toda contente e mostrando sua nova aliança de namoro.
Nesse momento, Melissa sentiu seu coração acelerar e as lágrimas lhe subiram aos olhos. Respirou fundo e se obrigou a engolir o choro. Sentiu uma tristeza terrível, como não sentia havia muito tempo e só então, para sua própria surpresa, soube daquilo de que não havia se dado conta ainda, apesar de ser tão óbvio e pra qual agora era tarde demais.
Melissa estava apaixonada por seu colega.